domingo, 21 de fevereiro de 2021

Vozes Subterrâneas : Stela do Patrocínio, por Paulo Henrique Pompermaier




Vozes subterrâneas : Stela do Patrocínio, por Paulo Henrique Pompermaier


“Nega, preta, crioula”, a poeta Stela do Patrocínio atravessou com sua fala a própria condição social, a vida no hospício e o precipício humano

 

No devaneio de matéria líquida, cintilante e oscilante, carne em frenesi de vida, a carioca Stela do Patrocínio fez-se poeta. Ecoou o obscuro através de uma boca que falava coisas. Na crueldade e na bênção da ignorância, falou como quem tece vislumbres de uma vida profunda. Desmembrou as palavras, desenraizou-as do ensimesmado cartesiano no fluxo de desrazão da mente delirante. Na tentativa de dar forma a si e ao mundo com sua voz, Stela produziu um discurso lúcido, consciente de sua condição subjetiva, da vida no hospício e dos abismos humanos.

Filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio, nasceu a 9 de janeiro de 1941. Gostava de leite condensado, Coca-Cola e salgado, biscoito de chocolate, cigarros, caixa de fósforos, óculos de sol, blusas azuis. Tinha instrução secundária e trabalhava de empregada doméstica na Urca, na mesma casa em que sua mãe enlouqueceu. Foi admitida aos 21 anos no Centro Psiquiátrico Pedro II após registro na quarta Delegacia de Polícia.

Rápidas e esparsas são as imagens do passado de Stela do Patrocínio. Um andar sem registro a que foi submetida por sua condição de mulher, negra, pobre e esquizofrênica no Rio de Janeiro da década de 1960. Diagnosticada com “personalidade psicótica mais

esquizofrenia hebefrênica evoluindo sob reações psicóticas”, foi internada em 1962 no

Centro Pedro II. Quatro anos depois foi transferida para a Colônia Juliano Moreira, onde viveu até sua morte em 1992. Dos trinta anos em que passou em hospitais psiquiátricos, o único registro de suas falas, transformado em poesia, está no livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Azougue, 2001).

Gênese de uma poeta

Em 1986 a artista plástica e professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage Nelly Gutmacher foi convidada pela psicóloga Denise Correia a montar um ateliê na Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica fundada em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, na primeira metade do século 20. Gutmacher e sua estagiária, a também artista plástica Carla Guagliardi, atuaram na Colônia entre 1986 e 1988, na ala feminina do Núcleo Teixeira Brandão, onde usaram a arte como forma de desenvolver a capacidade de expressão das pacientes.

Foi nas reuniões semanais do ateliê que as artistas entraram em contato com Stela do Patrocínio, lá internada desde 3 de março de 1966. Negra, alta, sem nenhum dente na boca, de “postura muito soberba, muito segura, e de uma inteligência abissal”, como relembra Guagliardi, Stela desde o início começou a frequentar as reuniões.

Diferente das outras pacientes, ela não gostava de desenhar. Rabiscava alguns traços e queria, sempre, ficar conversando e exteriorizando suas ideias. “Às vezes ela nem entrava, ficava do lado de fora, falando sozinha, e a gente que ia lá conversar com ela”, na memória de Nelly Gutmacher. De sua família nada se sabia, apenas que sua mãe também tinha ficado internada na Colônia e saíra antes da entrada da filha. Em suas palavras, era “sem família/ minha família é dos cientistas agora”.

Gradualmente, as artistas plásticas do ateliê perceberam que a fala de Stela diferia-se naquele ambiente. Consciente de suas palavras, ela produzia um falatório marcado por reflexões existenciais. Com o tecido cotidiano, sua condição de mulher, negra, pobre e internada em um manicômio, Stela compunha um obscuro ser humano. Vislumbres do que foi, na expressão de Gutmacher, um “aprendizado humano, sobre a coisa do ser, o que é o ser”.

Espantada diante de sua sofisticação linguística, Guagliardi começou a gravar as falas de Stela. Fazendo perguntas sobre sua vida e sua condição, registrou sua voz, no formato de entrevista, durante os dois anos e meio que existiu o ateliê. A experiência artística no manicômio culminou, em 1988, na exposição “Ares subterrâneos” no Paço Imperial, que reunia a produção artística de pacientes. Como forma de representar Stela, Guagliardi datilografou algumas de suas frases, que foram expostas na mostra.

Diabética, Stela foi internada em 1992 no Hospital Cardoso Fontes, com um quadro de hiperglicemia grave que levou à amputação de sua perna. De volta à unidade hospitalar da Colônia, entrou em depressão, parou de se alimentar e conversar. Morreu pouco tempo depois, nesse mesmo ano, de infecção generalizada devido à cirurgia.

Suas falas, com a exposição no Paço Imperial, chegaram à filósofa e psicóloga Viviane Mosé, que percebeu ali certa densidade e decidiu, com as gravações, editar um livro de poesia. Sem precisar corrigir erros linguísticos, e tentando colocar na forma escrita do poema todos os desdobramentos e nuances da oralidade, Mosé organizou o livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, publicado em 2001 pela Azougue Editorial em parceria com o Museu Bispo do Rosário.

Finalista do Prêmio Jabuti, o livro foi reeditado em 2009 e atualmente está esgotado, mas com planejamento para futura reedição no segundo semestre deste ano. O discurso de Stela, recluso por trinta anos em instituições psiquiátricas, ultrapassou os limites do livro. Foi para o teatro em 2003 com o espetáculo musical Entrevista com Stela do Patrocínio, de Lincoln Antonio e Ney Mesquita. E para o cinema em 2008 com o filme Stela do Patrocínio: a mulher que falava coisas, de Márcio de Andrade.

Nega, preta, crioula e bem patrocinada

Diferente dos outros pacientes da Colônia, aos quais Stela se referia como “não tem nenhum que pense”, sua fala estava marcada de uma consciência da condição hospitalar e de certa percepção de sua subjetividade. “Eu sou Stela do Patrocínio/ Bem patrocinada/ Estou sentada numa cadeira/ Pegada numa mesa nega preta e crioula/ Eu sou uma nega preta e crioula”, como declara em um de seus poemas.

Criada no século passado, a Colônia Juliano Moreira, onde também esteve internado o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, era o típico modelo de instituição disciplinar, regida pelo ideal de controle e domesticação do corpo e subjetividade. Chegando a ter 7.700 pacientes encerrados entre suas três unidades, o manicômio aparece nas falas de Stela através de um crivo crítico, como lugar de maus-tratos e doença. Ao relembrar sua trajetória, a poeta afirma, por exemplo, “Eu vim do Pronto Socorro do Rio de Janeiro/ Onde a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio/ E era um banho de chuveiro, uma bandeja de alimentação”.

A prisão também aparece como uma temática importante para Stela, que se sente “cumprindo a prisão perpétua, correndo um processo, sendo processada”. Inclusive, durante a experiência do ateliê, um dos passeios promovidos pelas artistas foi ir desenhar um muro em apoio ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, iniciado em 18 de maio de 1987. Guagliardi, que tinha mais intimidade com Stela, relembra sua manifestação: fez um grande risco no muro e ficou parada, olhando os outros desenharem.

Na recordação da artista, esse porte da poeta a distinguia. “Ela não era uma pessoa sorridente, que achava graça nas coisas. Ela tinha uma gravidade muito intensa, e isso era como entrar em contato ao vivo com Nietzsche, com Artaud”, afirma.

Apesar do transbordamento, em suas falas, da sua condição hospitalar precária e repressora, Stela tinha consciência que seu gosto pelo falatório não mudaria aquela situação, que ela continuaria “botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum”. Com olhar arguto, percebia que o discurso obscuro do louco não teria chance no império da razão, “Porque quem vence o belo é o belo/ Quem vence a saúde é outra saúde/ Quem vence o normal é outro normal/ Quem vence um cientista é outro cientista”, como diz em um dos poemas.

Árida existência

Paralela à construção de sua condição manicomial, Stela tangeu, com sua fala, o fluxo constante da vida que não consegue ser apreendido pela razão. As mutações e deformações de uma matéria que apenas vive, e, assim, aproxima-se de um domínio não humano. Em sua inconstância de formas, falando para tentar se formar, Stela ocupa uma existência incerta: “Antes era um macaco, à vontade,/ Depois passei a ser um cavalo/ Depois passei a ser um cachorro/ Depois passei a ser uma serpente/ Depois passei a ser um jacaré”.

Corpo em crise, de existência incerta, sua poesia reflete tais cisões, que não se comportam mais na ordem normal do tempo e do espaço. Assim como vai ao reino dos bichos e dos animais para se encontrar, ela se projeta em um novo tempo, de dimensões pré-históricas, no qual percebe a agrura de um corpo já velho, embebido e extenuado pela existência. “Comecei a existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos. Logo de uma vez, já velha”, diz a poeta.

Quando toca a realidade, aparenta o esforço inútil de segurar alguma coisa ainda viva. Cria uma fala infecciosa, que contamina a linguagem e a leva aos seus extremos de sentido. Limites nos quais a comunicação aparece como ato irrisório e incapaz de atingir algo que pulse vivo e orgânico. O visceral, na fala de Stela, é remexer a carne pegajosa do mundo e seus excrementos, nos quais nenhuma vida pensante é mais possível:

“Eu sou mundial pobre/ Tudo pra mim é merda durinha à vontade/ Até ser contaminada e contaminada até ser merda pura/ E é fezes excremento bosta cocô/ Bicha lombriga verme pus ferida vômito escarro porra/ Diarreia disenteria água de bosta e caganeira”.

Seu contato com a matéria disforme do mundo a leva, como em gesto hierático, a beber o vermelho líquido que pinga do que está no escuro da ignorância. Ela sente que não gostaria de tomar forma, é obrigada a nascer pelos médicos, mas queria apenas ser parte integrante do nada, o não viver. “Eu não queria me formar/ Não queria nascer/ Não queria forma humana/ Carne humana e matéria humana/ Não queria saber de viver”, reflete.

Mulher, negra, pobre e louca. Por uma casualidade, teve sua fala preservada na história, a despeito do preconceito retilíneo e iluminado da razão endossado por uma sociedade machista e racista. Tangendo o obscuro, sua fala aparenta claro enigma que, em meio à barbárie da razão, propõe  uma nova possibilidade discursiva e subjetiva. Como reflete Guagliardi, “ela viveu uma vida anônima dentro da instituição. Foi por um acaso que tivemos essa oportunidade de conhecê-la um pouco mais e produzir esse único registro”.


Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro


É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo

Palava de Stela
Quando:
 até 27/08. Sex. e sáb. às 21h e dom. às 19h
Quanto: R$40 (inteira) e R$20 (meia-entrada)
Onde: Top Teatro – Rua Rui Barbosa, 201 – Bela Vista, São Paulo

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